Virada pelo avesso. A carne nua e crua. Exposta aos holofotes.
Eu sabia o que tinha ido buscar quando me inscrevi no curso de teatro. Era o desconhecido, a fraqueza, o anseio por perguntas mais desafiadoras. Buscar o desconforto do novo, a aventura do não saber, não ser excelente e ainda errar bastante. Viver. Humanizar-me.
Há alguns segundos para o início de minha primeira peça, sinto. Milhares de sentimos borbulham de todas as partes de mim, se contradizem, se chocam e se beijam. Medo, insegurança, otimismo, ansiedade, vergonha, curiosidade e reticências. Sim, reticências porque acredito que há ainda sentimentos que não têm nome.
Eu me despia e deixava sentir tudo, todos aqueles sentimentos que juntos tornavam-se outro, um profundo, particular e heterogêneo palpitar. Admito que quase sucumbi. Pensei: “ora, que deu na minha cabeça em cismar de fazer essa peça! Que estou fazendo aqui, como faço para sair dessa?” Não havia saída. Todos estávamos conectados e havia uma platéia a nossa espera.
No palco tudo que é escondido por debaixo dos panos do cotidiano me esmagava e me mantinha de pé. Entre o ridículo e o grotesco, a hybris. É impressionante, surreal, mágico, sim, o teatro era mesmo aquilo tudo que me contaram. Um dos momentos mais vivos de minha vida. Eu vivia o ápice. Caminho intermitente entre o movimento e a imobilidade, o equilíbrio e o desequilíbrio.
O teatro me apresentou ao meu corpo.
Hoje em dia colocamos o nosso corpo em segundo plano. Primeiro o intelecto ou, melhor dizer, os certificados que atestam conhecimentos e nos dividem em classes, grupos. Se sobrar tempo (e dinheiro) nos voltamos a vaidade com o corpo, o cuidado com a forma física. Mas este é só o corpo objeto, para ser observado e exposto.
Poucos chegam a percepção do corpo sujeito -nossa primeira casa, o nosso primeiro instrumento de significação. Todo o nosso corpo comunica, deixa pistas dos nossos estados de alma. Da mesma forma, não é só através do olhos que lemos, todo o nosso corpo lê, cada pedaço do corpo humano faz sua(s) leitura(s) do mundo.
Tudo é texto, narração, semiótica.
O ator é, então, uma infinidade de textos costurados em busca de expressividade. Atuar é deixar-se ler.
Lá no palco, o trabalho em equipe também muito ensina.
Você olha o outro e vê a si próprio. Tornamo-nos um só corpo: um espetáculo. E ao mesmo tempo um corpo fragmentado, de diversos rostos, um mosaico de possíveis leituras. Mas ainda assim, um só corpo. Partes que fazem o todo. Todo que fazem as partes. Uno e múltiplo, complexo corpo.
Por isso o teatro me lembra tanto o mundo. Uma arte, uma reflexão sobre a vida.
Em memória da minha primeira peça, em dezembro do ano passado. Só agora encontro as palavras para descrever, o terrível, o inigualável, o momento do palco. Todos, pelo menos uma vez na vida, deveriam se permitir e ter um momento desses!!
ResponderExcluirVocê é surreal...
ResponderExcluirPerfeitamente bem escrito, traduz de verdade seu sentimento e o que você pensa e vive!
"Poucos chegam a percepção do corpo sujeito -nossa primeira casa, o nosso primeiro instrumento de significação"
Leve e verdadeiro!
Atuar é, de fato, deixar-se ler. Vc está definindo coisas, criando conceitos e sempre me surpreende.
ResponderExcluirVocê arrebenta! É demais, vc falou tudo tudo tudo... Perfeito. Pensar no corpo como matéria para interagir, para SER me dá muita saudade. O texto está brilhante! Parabéns, minha querida!