segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Lucas

Reescrito dia 23/02/2010.

LUCAS.


Novamente aquele olhar. Aquela expressão de devoção e dor; como se eu fosse uma espécie de entidade religiosa que devesse ter compaixão. O que eu sentia era pena e, talvez, um pouco de raiva também. Em troca, dei a melhor expressão sarcástica que pude. “Seja homem. Choramingar não levará a nada, nem me fará ser mais seu.”
Num estalo, ele recuperou a compostura e encarou-me. Eu sabia que ele já estava exausto para continuar, e que mesmo assim eu não poderia deixá-lo em paz.
“Tão injusto, você nunca foi e duvido que um dia será meu,” ele insistiu em um tom ressentido.
“Hum,” sorri um tanto admirado. Ele tinha toda a razão. Não que eu não me importasse, aqueles olhos ora abatidos e ora esperançosos eram o que me fazia existir. Mas eu não podia evitar sentir-me o possuidor, e o era de fato. Como uma mãe e seu filho, ou melhor, como um homem e seu cão. Um homem que, seguro de sua posição de senhor da casa, cria um cão no quintal, alimenta-o, lhe oferece algum tempo de seu dia, passa a estimar o animal. Um cão sempre deve ser submisso ao seu dono.
“Cego é aquele que não se descobrir nessa vida,” disse ao acaso, enquanto apreciava seu quarto. Tão bobo com todos aqueles livros e discos românticos. Preso em seu próprio conto de fadas, o meu querido cão, sempre fantasiando as coisas que não existem.
Ele ainda me avaliava. “Não me amas?” e era mais uma exigência que pergunta. Perscrutei seu olhar. Dessa vez nem esperança nem melancolia, sua fisionomia exprimiu um sentimento que não reconheci.
“Eu não sei...” respondi, duvidando de minhas próprias palavras. Queria ser sincero para ele. “Mas acho que sim,” e foi o mais perto de franqueza que jamais lhe entreguei.
Ele suspirou, “Lucas, hoje não me apetece enternecer-me de suas mentiras,” dessa vez ele parecia decidido. Mas será mesmo? Resolvi provocar-lhe. “Não procure em mim suas certezas. Por favor, perceba de uma vez por todas que não irá encontrar nenhuma aqui.” Então acho que consegui atingi-lo, ele desviou o olhar e levantou-se. Afastava-se, me dando as costas. Senti uma inquietação subir-me pela espinha.
“Você é um homem, então. Sim você é. Um homem muito metido a besta,” falei assim, atacando-lhe as palavras, queria que ele olhasse para mim. Ele olhava a janela.
“É muito feio esse seu jeito de nunca saber decidir-se,” afirmou. A aspereza de sua voz me atingiu com tanta força que me paralisou por completo, não consegui articular uma só palavra. Há quanto tempo eu não ouvia sua voz assim, não lamuriosa, determinado.
Mais uma vez, ele com a razão. Não gostava de me sentir acuado com suas perguntas e, no entanto, sempre achava um meio de me divertir com elas. Era bom reverter as situações só para deixá-lo irritado. E eis que agora eu, eu não sabia o que poderia dizer a ele, que parecia tão absorto em seus pensamentos e, como sempre, olhava a lua. Colocou um CD, a faixa de sempre, Sixpence tocava “Kiss me”.
“Você sabe bem. Você olha a Lua, você só deseja o inalcançável. Venha, tente, kiss me,” eu sabia que o veneno boiava quente em minhas palavras. Logo ele iria se virar, os olhos rasos d’água, e pedir que eu parasse com tudo aquilo.
Mas ainda fitava a Lua, estaria hipnotizado? Talvez eu tenha sido muito cruel, estaria em choque? Queria ver-lhe a face. Tentei dominar o pânico que crescia involuntariamente a cada segundo que ele rejeitava a minha presença ali. Vejo que será uma noite longa e inédita.
Começou a balbuciar umas palavras. Não era para mim que ele falava.
“tentar tocá-la, poderia, mas estás tão, tão longe. Oh Lua, minha dama misteriosa, me contarias se eu estivesse totalmente errado, não é? Por favor, me diga se perfeição, se completude só é possível nos sonhos ou, ou se posso continuar sonhando aqui. Eu não entendo, não consigo juntar os pedaços de mim.”
Terminei minha prece e virei; meus olhos piscaram ao ver o estranho no espelho. “Não sei quem você é, então,” Eu confrontei Lucas pela primeira vez.
Um lapso de surpresa, ou terá sido medo. Lucas agora franzia a testa, desconfiado. “Qual é a questão agora? O que eu perdi, meu querido?”
“Eu sempre te dei poder sobre mim,” disse em um rosnado entre meus dentes, era como se uma fera tentasse se libertar através da minha boca.
“E isso é errado? Reflita, meu caro, se não é a ordem natural das coisas. Há sempre um vencedor,” Lucas ria-se de mim tentando parecer à vontade, mas sua voz não parecia firme como de costume.
“Lucas, Lucas, sempre tão o inverso de mim. Você sempre diz o que pensa, não?” dessa vez ele não iria me dominar o espírito. Não iria deixá-lo me enlouquecer.
Olhei fixamente o seu belo reflexo. Analisei aquele que era o motriz de minhas oníricas aspirações. Meu corpo automaticamente congelou quando seus olhos trancaram os meus. Tão intensos eram os olhos de Lucas, sempre me dragavam para dentro dele. Eu sabia que não poderia escapar.
“Você escolheu a imaturidade para lidar com os jogos de viver, não é?” eu não queria me entregar sem lutar, eu precisava entender.
“Eu vejo a vida como um contínuo vir a ser. Não espere nada de mim.”
“Mas diga-me, eu te imploro, como pode ver tanta graça em errar?”
“Eu não sei,” Lucas murmurou. E pela primeira vez estava ali e, como ele pode me deixar vê-los! Lucas nunca demonstrava suas fraquezas, mas a minha frente estava um par de olhos tristes. Nem sinal do sorriso irônico que eu tanto amava. Vê-lo sentir dor me ensandecia.
“Kiss me, Lucas,” minha voz estava bem alta agora, desesperada, “por favor, por favor, seja meu, complete-me.”
Eu desprendi meu olhar dos seus e mirei os meus dedos dos pés. Tentei me focar nessa imagem, enquanto me esforçava para afastar o pensamento de Lucas saboreando minha fraqueza com seu ar de satisfação. Mas talvez não. Nunca vi Lucas sofrendo, nem mesmo um ponto fraco. Ele sempre escondia seus sentimentos por trás daquelas piadinhas afiadas e sempre prontas para implicar ou me entristecer. Assim era Lucas. Eu não me importava, eu não podia evitar amá-lo de qualquer forma. No entanto, uma pequena parte de mim acreditava que Lucas me amava e, sendo assim, ele estaria tão triste quanto eu estava. Mas era uma parte tão diminuta que não se atrevia a lhe dirigir a palavra. Eu esperei pelo seu veredicto. Não veio. Então me preparei para encará-lo, não havia nada a perder.
Embora preparado, ver sua face perfeita em dor me fez perder o fôlego; seu reflexo era um eco do meu agora. Examinei o ângulo tenso de suas sobrancelhas; um instante eterno. Então compreendi. Ele sempre tentou me dizer, estava em seus gestos, seu sorrir, mas eu fingiria não ouvir, não ver. Eu não podia ser culpado, eu adorava Lucas! Amá-lo fora minha vida durante tanto tempo. Eu não me importava em ignorar o que estava exatamente a minha frente. Faria qualquer sacrifício de bom grado por ele, mas já estava terminado desde o começo. Lucas era algo que eu nunca poderia ter e o que eu mais desejava. Todo o tempo ele tentava apenas me fortalecer, mas eu falhei novamente.
“Está tudo bem, Lucas. Eu entendo agora,” fraquejei, minha voz tão frágil quanto uma porcelana. Eu lutava para que minha mente não depreendesse as palavras que eu tinha, mas relutava desesperadamente por não ter que dizer.
"Eu quero que você saiba que eu, finalmente, vejo a verdade e," não pude terminar a frase, não podia. A dor era dilacerante e entorpecia meu corpo, meus lábios seriam o meu implacável carrasco. "Você pode ir, Lucas. Você não está mais ligado a mim," disse, mas não foi mais que um sussurro.
Eu estava em pedaços. Com os olhos fechados, percebi que estava tremendo, abafando um grito excruciante. Lucas era o centro do meu universo, mas não podíamos ficar juntos. Lucas era perfeição, intangível fora daquelas paredes. Era inevitável, um dia eu teria que encarar a realidade e deixá-lo ir, pois eu sabia que nós não pertencíamos ao mesmo mundo. Eu poderia resistir àquela dor desde que ele estivesse a salvo da minha obsessão.
Minhas certezas submergiram na escuridão do meu futuro. Minha vida seria um vazio negro dali em diante, eu sentia como se já o fosse. Não pude evitar sangrar por dentro. Escutei ele chamar meu nome, sua voz tremendo também, fez-me arrepiar.
“Eu te amo.”
Inesperado. Não, ele já devia estar longe e agora o entorpecimento me causava alucinações. Meus olhos estavam embaçados e úmidos. Levei alguns segundos para me restabelecer. Ele pegou minha mão. Ali estava a sua bela imagem, ah, Lucas estava brilhando. E me estendia a mão, confiante.
“Lucas. Não há como. Lucas, o que eu posso fazer?”
“Vem comigo?”
As palavras não faziam sentido, mas soavam como música. Lucas me queria. Ele me preencheria, era tudo que eu sempre quis. Nada mais impediria que eu vivesse a história que inventei. Afinal, minha alma já era dele desde o princípio.
Eu lhe ofereci meu sorriso tímido. Ele sorriu de volta, aquele seu, meu, lindo sorriso torto para o canto, que de tão grande e brilhante não poderia ser real. Oh, Lucas era um anjo! Meu Lucas. Ele sabia que eu iria com ele para onde quer que fosse, faria tudo por ele.
É servir a quem vence o vencedor. “Para sempre.”
E os dois se foram no sumidouro do espelho. Eles se permitiram, enfim.

7 comentários:

  1. Poxa, gata!! To quase chorando aquiiii!!
    Belissimo conto! é foda ser rejeitado... esse conto doeu na minha alma! amei! parabens!
    nota: at ease, nao at easy. Acho q so isso mesmo.
    beijoooooooooooooooooooooooooooooooo! vc è tao talentosa q doi, caraaa

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  2. Putz..
    sem palavras..
    muito bem escrito...
    gostei da questão da dualidade e da não-dualidade existente na mesma... que vc colocou mt bem
    ta de parabéns!
    beijos

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  3. That's too familiar, to be honest. And great, indeed.
    You rock my socks!

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  4. Wow.. I'm just speechless!!
    amazing shortstory, beautifully written... *.*

    "He was something that I would never have and what I wanted the most as well."
    Yeah.. this is life.. you never get to have what you want the most...

    I'm so proud of you.. this is perfect!
    luv u
    ;*

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  5. parabens, sem palavras!!!!
    vc e d+...
    bjos. HALLEY

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  6. Bom, ler algo que se assemelhe a uma auto biografia tão sensível não é uma tarefa fácil pra mim. Confesso que chorei. Eu naum faria melhor. A sua frieza sensível e sensibilidade fria deram a visão que este lindo romance pedia. Lucas não morre, persiste. Não abandona, abraça, evolve, guarda e diz que vai ficar tudo bem. Que ele sempre estará ali pra amparar-me nas quedas. Lucas é uma saída, um socorro escaposo e marido dos sonhos. Meu refúgio, subterfúgio, meu projeto de vida...


    P.s.: Meu Lucas é mais cálido e mais suave. Mas se fosse obedecê-lo, vc naum escreveria um conto e sim "Malhação".

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  7. amego, desculpa por não ter pedido os direitos autorais da sua vida antes de escrever o conto!! hahaha, mas que bom que você gostou, afinal, foi em sua homenagem. :)

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