quarta-feira, 11 de março de 2009

Eles

Ela já se encontrava debilitada, trêmula muito pálida. Escrevia há milênios. Os olhos ardendo, o pulso pungindo. Ela escrevia sobre o coração.



Há muito tempo atrás Lia descobrira seu coração. Até então tudo era vida, mas a menina não se dava conta de nada, da infância vivia as inconstâncias. Não havia muito do que se falar da época antes dele aparecer. Não foi em nenhum evento ou data especial que ele veio, simplesmente apareceu. Não causou estranhamento não, foi bem natural. Simplesmente começou a existir nela, e era nas pequenas coisas da vida que ela o notava. Com o passar do tempo o seu modo de sentir mudou, agora ela realmente sentia! Logo, passou a estimá-lo, que bom que ele estava lá. O mundo não podia ser mais colorido agora que ela tinha um coração e se dava conta disso. Curiosa, a mocinha se entretia nele, que era o seu melhor amigo. Ele a encantava e, irremediavelmente, ela passava a vê-lo em tudo. Para a romântica e sonhadora Lia, ele era mágico, de artimanhas infindáveis. Um órgão inflamável e impermeável, capaz de tudo suportar.
Lia vivia tanto por seu coração que ficou egoísta, passou a se perguntar se todos o tinham. Ele era tão dela, não fazia sentido que todos possuíssem um. Ela era esperta, queria descobrir tudo a respeito da vida. Analisando o mundo, foi percebendo que nada era tão colorido se você pairasse seu olhar ali, por um tempo. “Era fato, com o tempo tudo desbotava”, constatou a moça. Era a sua descoberta. Se todas as outras pessoas tinham um coração ela não sabia, mas se tivessem... bem, se o tivessem eles com certeza não se davam conta disso, não como ela, pois só o seu coração sabia a verdade das cores. Orgulhosa dele, ela distraia-se em seus cuidados e mimos. E havia de ser boa para ele, tinha de ser. Pois se ela era jovem e tinha afeto. Dona dele, todo encantador e amuleto.
Muito tempo se passou, mas nela não havia muitas mudanças; era como se ela não as quisesse. Ela se percebia como uma cientista a procura de respostas e se voltava toda para seu trabalho. Só olhava para dentro de si, olhava para ele. Queria descobrir se tinha regras, modo de usar. E como quem disseca um corpo, ela o analisava. Estava obcecada por ele. Tudo era meticulosamente estudado, não podia dar um passo em falso, qualquer erro poderia ser fatal. Havia de controlar os batimentos, a pulsação, nenhum passo não programado, nada podia sair de seu controle.
Não se dava conta, mas a vida agora era só opacidade. Sua fixação já não tinha mais fim. Ele se confundia nela e não se sabia qual dos dois era o mais cinza. Foi exatamente nessa época que ele passou a doer. Ah isso certamente não estava nos planos! A dor veio da dormência e era tão profunda neles, era como perder um membro. Dor, Lia nunca havia experimentado qualquer aflição ou amargura. Ela planejara tudo muito bem e estava certa de que todas as suas funções vitais estavam em perfeita ordem. Não passava, se alastrava pelas suas veias como fogo. Era de enlouquecer. E assim surgiu o ódio. A culpa era toda dele, não havia dúvidas, ele era a fonte da dor. Logo ele, que andou tão manso por toda a vida, vinha agora matá-la. Sonso! Talvez só esperasse a hora certa para apunhalar. Ela não podia suportar mais, infidelidade dele, ele que era tudo, era dela. Ela buscava forças em sua razão para encará-lo, mas sabia que seus cálculos a trairiam novamente. Um duelo se aproximava.
Lia se concentrou, precisava livrar-se dele, deveria haver um jeito. Mas a dor não a deixava pensar, não mais, ela só podia sentir. Tivera de desacostumar-se a sentir, pois havia de ser lógica! Ela que cinzenta procurava soluções em sua razão, desatinada de cólera, era obrigada a sentir. E todas as sensações das quais se poupara durante a vida explodiram uníssonas naquele instante.
E era um instante sem fim. Ele crescia. Ele subtraia o ela diminuta. Eles se encararam. Ali segundos pareciam anos, quando o silencio reinava, rosnando num canto, periclitante, incomodado. Até mesmo o ar se encolhia, sobressaltado.
Olhos a fitavam, esses olhos pesados. Olhos a despindo friamente. Nada escapava àqueles olhos negros tão sérios, nem um traço de seu corpo, nem uma mancha de sua alma. Ele a conhecia bem, mas o que queria? Dominá-la? Por um momento ela teve medo, sentiu todo seu pesar, era fluído e pesava. Quis perder os sentidos, desmaiar. Mas estava presa àqueles olhos, que a vasculhavam. Era inquietante a tensão, e ele frio, a paz de um morto. Ela revirada, dissecada. Os olhos já tão profundos, que ela não possuía alma suficiente, tudo transbordava. Então, ele sorriu. Um sorriso tão grande, se ria dela. Via-se suas gengivas vermelhas cínicas, o desprezo estampado. Ele olhava e sorria, algo errado ali. Não condiziam as duas ações, eram como dois quadros sobrepostos. Ele mentia? Mas quem? Os olhos ou o sorriso?
A verdade é que ele a fascinava, como sempre. Lia entendeu, não admitiu e guardou para si. Os olhos brilhavam tanto, como se soubessem toda a verdade, como se quisessem engoli-la por inteiro. Por que não a deixavam em paz? Por que olhar com toda essa atenção, quase como se ela o importasse. Doía tanto. E a dor a nauseava, ela cairia a qualquer momento. Então fechou os olhos. Na escuridão ela se viu sem alma, sim, ele há muito tempo já a havia roubado. Verdade que ela fingia não notar, era condescendente com ele enquanto mentia para si. Ela mentiu todo o tempo, pobre Lia, precisara reprimir a dor. Abriu os olhos. Não havia um passado nem um presente, era como se ela nunca tivesse existido. Seu corpo inteiro estava frio.
Ele também já não era o mesmo. Seu sorriso se alongava nos cantos, se tornava gentil. Seus olhos ganhavam vida, percebia-se até a frivolidade quando ele piscou. De repente, aquele sorriso brilhante se acercou de sua boca, ela quase pode tocar toda a ternura. Seu hálito de mar salgado embriagava, ela absorta seguia as ondas da compassada respiração dele. Um abraço a envolveu, firme. E nesse instante que a surpreendeu, ela sentiu-se completa, pela primeira vez em sua vida. Um beijo! Lia nunca beijara. O beijo era quente, e seu corpo todo agora experimentava. Seus sentidos todos como que de um longo sono despertavam. Seu corpo queria, precisava ser dominado. Ela o desejava, como nunca. E de pronto, mergulhava-se nele. Um grito, cálido como um sussurro, escapou de sua boca e selou o pacto. Ela o amava.
Já cansada, exausta, tentou pôr as idéias em ordem. Foi uma vida, uma vida inteira. Ela não achou grandes respostas. Nada fazia sentido. Ele calor, ela frio. Era incrível, mas eles já não eram dois. Os laços desfeitos, eis que ela era o elo fraco! Nela não mais existia a necessidade de separar coisas, tudo parecia simples e, no entanto, satisfatório. Mas não queria pensar, a dor passava. passava. Estava feito.
Pegou caneta e papel. Estranhou __ lembrava-se de já ter escrito muito, mas ali estava, papel em branco a lhe encarar. “Não havia culpa, fora justo!” convencia-se aqui e ali com certa piedade. Aquela ausência de palavras o exauria, e mesmo sabendo da irremediável tarefa que tinha pela frente, deixou-se derramar na inércia. Seu olhar débil mirava a folha, como que esperando que os minutos levassem consigo o que chamava de “seu dever”. E distraia-se muito bem, quando de súbito foi atingido. Um susto! Algo que vislumbrou o arrancara de seu transe... espiou desconfiado por cima dos ombros, não havia ninguém. Aprumou-se a buscar o papel, que estava ali, nenhuma linha. Seu olhar tornou-se cortante, decisivo; e com um lastimoso suspiro, escreveu. Os olhos ardendo. Pulso pungindo. Ele escreveu sobre ela. E muitos eram os motivos, afinal, era sua despedida.

6 comentários:

  1. AEwwww.. agora posso comentar..rsrs.
    Enfim.. achei esse conto super Thamiresco...
    Cada palavra... cada modo de falar... traduz vc... eu vejo você na forma texto...
    Achei um texto super interessante... tive q ler duas vezes pra pegar a essencia do negocio.. mas gostei bastante...
    viva o primeiro conto de Thamiris!!
    XD
    bjaum, menina!!

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  2. Bom, vc é rosa na vida. Este texto é um mergulhar no peito. Lis + pector = Flor no peito.

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  3. Q lindoo amiga!!
    Realmente esse conto é a sua cara..td a ve com vc!
    Parabéns por ser o 1º!!
    A história é mtoo legal...o enredo conseguiu me prender..li concentrada..qria entender logo o q estava acontecendo!!
    bjinhuss...

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  4. Eu amei o conto, achei triste e apaixonado...rsrsrsr
    Fui envolvida do começo ao fim!!

    bjux***

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  5. vc já sabe o q eu penso dele, não é mesmo? Incrível! Vc começou a escrever contos e já tem uma maturidade na escrita q teoricamente só vem da experiência. Lindo, muito bem escrito. Grandioso.

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