segunda-feira, 12 de abril de 2010

Ensaio sobre a minha cegueira

Entendi que as águas de abril não foram um castigo. A chuva não explica a tragédia. A vida do pobre é de sonho e de lama. É de pedra e é de suor salgado que não substitui a lágrima. É a vida no precipício, construindo casa em área de risco. É a autoridade aplaudindo, o auxílio social camuflando a venda de votos. É pau é pedra é o fim do caminho, é mais casa regulamentada para cobrar IPTU.

"Me disseram porém que eu viesse aqui pra pedir de romaria e prece paz dos desaventos". Preferi escrever a denúncia. Sou culpada. Todos são. Fechamos os olhos para uma verdade que nunca esteve escondida. E trocamos palavras vazias de “oh, que horror, quanta gente morta, meu Deus!”. Surpresos? Somos a parcela da população mais apta a ler a política pública e denunciar o descaso. Mas a vida é bem mais complicada que isso. Vivemos pela individualidade, apesar de construirmos nossos discursos e identidades socialmente. Faço parte dessa confusão e dessa gente que não se respeita. Como cantava Renato Russo: a culpa é de quem? A culpa é de quem? Não serei menos culpada ao postar esse texto. Tampouco quero ocultar o meu alívio por estar viva e minha casa de pé _ que bom que não nasci miserável!.

Por que a mídia só agora aborda o problema da indústria da favelização por esse ângulo? Que na favela tem bandido, droga e muita gente carente todo mundo já sabe. Então a Veja lança a pergunta: “Quantas tragédias ainda ocorrerão até que o Rio de Janeiro descubra suas fragilidades?” Mas era mesmo preciso uma tragédia para tal? Afinal, que aqueles barraquinhos empilhados uns sobre os outros encravados nas encostas dos morros estavam sujeitos a um iminente colapso, bem, era evidente. Até mesmo elementar, não?, via-se a olho nu. A Veja culpa os governantes, o governante diz que não sabia que a favela havia sido erguida sobre um lixão e eu, eu que tantas vezes passei de ônibus em frente a ela, eu virei para o outro lado enquanto ouvia meu mp3.

Hoje me sinto impotente, estou de mãos atadas, e o melhor que posso fazer só remedia o desconforto mas não a dor daqueles. Todavia estou doando roupa, sapatos, alimentos e só. Não tenho esperança para doar. Creio que nunca haverá igualdade social porque o homem não quer ser igual.

“How many times can a man turn his head, and pretend that he just doesn’t see? The answer, my friend, is blowin’ in the wind. The answer is blowin’ in the wind.”

Bob Dylan nos contou que a resposta está "soprando ao vento". Hoje o homem mede a intensidade do vento e conhece seu curso, no entanto, mesmo com toda a tecnologia, ainda somos incapazes de parar para sentir e escutar o vento.

11 comentários:

  1. amigah, simplesmente adorei tudo que vc escreveu.
    Estava preparando um post exatamente sobre as chuvas e qndo lí o que vc pôs aqui, tive que citar em meu blog. Recomendei seu blog lá! rsrs

    beijinhos ;***

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  2. Obrigada pelo elogio!
    Então, alguns textos são sim complementares, e outros não.
    Estou com a idéia de fazer um livro há algum tempo, e estou unindo alguns desses textos que posto no meu espacinho.

    Beijos <3

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  3. "Todavia estou doando roupa, sapatos, alimentos e só. Não tenho esperança para doar"

    A melhor parte do texto!
    Muito verdadeiro tudo o que vc escreveu! E doloroso tb! Não descordo de uma palavra...

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  4. Realmente, me sinto como vc. O texto está otimo... só isso q posso dizer. Pensar nos outros... Quando vamos aprender?

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  5. Concordo plenamente com você! Como tudo nesse país, as tragédias antecedem as soluções para todos os problemas! Todos somos sim culpados e se não fizemos antes, que façamos agora tudo o que estiver ao nosso alcance...

    Grande texto!

    Um beijo, moça!
    E obrigada pela visita!



    Boa noite!
    ;)

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  6. Brilhante!
    Muito verdadeiro e impactante...
    Sua melhor crônica, sem dúvidas!
    Parabéns!
    Quando eu crescer, quero ser igual a vc...xD
    Beijoos!!

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  7. "Creio que nunca haverá igualdade porque o homem não quer ser igual". É este o ponto. Querendo olhar-se a si mesmo, o homem não enxerga (melhor, finge não enxergar) o outro. Precisamos, pelo menos, tentar ouvir o vento...
    ;)

    Ótimo post!
    Beijinhos.

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  8. "que bom que não nasci miserável!"
    Ó, quão maravilhosa constatação. O feio está em saber que nossa parte nos 10% da fortuna de todo o país se dá através do pisar em outros, em cascas de ovos, ou casas de cascas. Depois de um telefonema as nossos e contatar que tudo estava bem, só nos restava vestirmos meias e voltarmos às camas ainda não desfeitas e aproveitarmos o feriado forçado, assistindo a plantões na Globo News!
    É como Clarice, feliz em Deus, feliz da vida. Nada abalaria sua felicidade. Nada. A não ser o corpo putrefeito de um rato!

    De fato, para quem manda, é um problema a morte do pobre? Quantos pobres morrem nessas condições(ou descondições) por ano. São Paulo, Santa Catarina, Angra, Rio e agora Salvador, Aracajú e sabe Deus quanto mais...

    Vão se os dedos, permacem os anéis. Vão se os pobres e permanece o Baixo Bebê, o Cristo Redentor e Bonde de Santa Tereza!

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  9. "Creio que nunca haverá igualdade porque o homem não quer ser igual"

    O homem não quer e não pode, pelo amor de Deus, ser igual. Mas todo mundo merece condições iguais para que possa ser diferente!

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  10. achei que o texto deixava claro que eu me referia a igualdade das tais condições socioeconomicas. Claro, também uma questão política. O capitalismo social é paliativo e o socialismo, ora, esse só buscou mesmo a igualdade dos homens na utopia. Não estudei antropologia mas duvido que já tenha existido grupo humano organizado e capaz de viver em total simetria, principalmente depois da divisão do trabalho.

    Mas, enfim, você complementou muito bem, Gui. thanx

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  11. Igualdade.

    Esperança.


    Palavras marcantes nesse texto tão cruel. Cruel? Não, ñ é cruel é verdade encarada de fente que muitos preferem ignortar e agir como se nada esteja acontecendo....Tá td desabando (as vidas, casas, fampilia)

    e, a culpa é de quem?

    ......todos nós sabemos!

    Forte abraço.

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